quarta-feira, 18 de março de 2020

Amanhã, 19 de Março



Amanhã será comemorado o dia de São José, padroeiro de Ceará, marceneiro, artesão, gentil e silencioso personagem das narrativas bíblicas. Homem ímpio, temeroso a Deus e resiliente... São José que protegeu e guiou enquanto pôde sua família, ensinou um ofício ao filho que adotou e jamais, que se saiba, duvidou de sua missão enquanto pai.
Amanhã em meio à uma saga internacional contra um vírus que se deu um nome e um número, provavelmente iremos esquecer de refletir sobre o artesão. São José é o patrono do ofício de todos nós que trabalhamos com nossas mãos transformando coisas, criando soluções e objetos. As mãos calejadas da velha ou da avó que acalentam os males de uma criança, são as mesmas que transformam a palha em cesto, a juta em tecida, o algodão em fio. O saber milenar que carregam as memórias de um tecelão é como a magia de um alquimista que extrai da casca cor e luz, o dom da criação de um ceramista que faz do barro forma.
A Maria do Barro me disse muitas vezes que tínhamos que ensinar a fazer a panela para que as enchessem ... fui ler em um conto Zen Budista este princípio tão óbvio, tão simples, tão difícil de se realizar. As mãos da Maria eram as mãos de quem viveu cada dia como único, seu toque sobre o barro o transformava ... quantas vezes não começamos nosso trabalho com a forma de um feijão, um ovo, passando para uma panela. Criávamos e ensinávamos a perceber que da terra vem tudo, essa generosa mãe que não tem piedade de revelar aos seus filhos o bem e o mal. Mais de trinta anos se passaram e nunca mais falei sobre a Maria...ela era Cearense e foi a primeira artesã a ser agraciada como Mestre Popular pela UNESCO... essa memória se perdeu.
O Ceará é um Estado estranho, andamos centenas de quilômetros e mal vemos uma plantação, percorremos o sertão e vemos mato branco mas raramente vemos gado, sabemos que há vaqueiros mas esse são como lendas ou fantasmas na mata seca... andamos pelos povoados e sempre vemos uma mulher sentada à beira da porta suas mãos não param, sua atenção não desvia da criança, da estrada ... silenciosamente ora, trabalha, espera.
Tenho um Ceará romantizado dentro de mim, um lugar onde se luta e sobrevive, onde desapercebidamente as mulheres vão garantindo o estudo de seus filhos, a orientação da economia doméstica... um estado que deve tudo a uma população que vive e trabalha na informalidade, que finge não existir mas que se orgulha do que é.
A beleza de um bordado, uma bainha aberta, o crochete que enfeita as varandas das redes de dormir, a cadeira de couro que passa de geração para geração, o labirinto, o gibão, a sandália de couro, a mala que carrega isso tudo, a esteira onde por fim estendemos o corpo... tudo isso é parte de uma cultura que se desdobra nas vidas de todos nós e que ao mesmo tempo se perde em meio aos sons e as palavras da modernidade e do esquecimento.
Amanhã é dia de São José, dia do artesão, dia de olharmos para as mãos que transformam a crua realidade em beleza e bem, é dia de agradecer esse saber proveniente da vida que não se conhece a razão ou a origem mas tem a ciência inegável do cosmos.
Amanhã se lembrarmos será uma forma de resistir.
18 de Março de 2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário